domingo, 11 de outubro de 2015

Sobre o direito e a posse.


Texto de Bia Baccellet



"Quando se possui algo, de verdade, não há subjetividade ou meios termos. É meu, me pertence. Faço o que quiser, dou, empresto, vendo, troco, jogo fora, guardo, compartilho. Afinal é meu!"


"Quando se é posse de alguém, não há meios termos ou subjetividade. Sou do outro, ele me possui. Pode fazer o que quiser, dar, emprestar, vender, trocar, jogar fora, guardar, compartilhar. Afinal, sou do outro!"


Creio que muitas vezes já ouviu ou leu algo parecido com as afirmações acima. Esses são exemplos de citações muito usadas no fetiche da posse(D/s ou Escravidão Consensual). Quero falar sobre as possibilidades reais desse tipo de relacionamento e do efeito causado nos iniciantes quando se deparam com textos desse tipo.

Posse real de um ser humano não existe

Por mais real e palpável que pareça a posse e a renúncia dos envolvidos no relacionamento, posse real não existe. Quando pessoas decidem jogar o jogo da posse e entrega, isso é feito de forma consensual e de livre vontade, é um fetiche dos envolvidos. 

Dentro da dinâmica desse jogo há espaço para diálogo, foco no prazer do parceiro, atenção às necessidades um do outro e se assim a pessoa desejar, liberdade para romper o relacionamento, seja pelo motivo que for.
Nenhum relacionamento dentro dessa dinâmica é sem saída ou sem escolha. O parceiro escolhe ficar, como também pode decidir por sair.

Sentir-se posse ou propriedade de alguém, pertencer, é um fetiche muito comum, assim como possuir, sentir-se proprietário. Apesar de as pessoas envolvidas em relacionamentos nesse formato, gostarem de pensar que são realmente donas/posses do outro e se sentirem assim de fato, a posse não é real. Mesmo em casos onde são assinados contratos de escravidão e/ou submissão, este também é parte do fetiche, e não é legalmente um contrato de transferência de propriedade.

Confundir posse/propriedade dentro de uma D/s com posse/propriedade real é um dos erros mais comuns dos iniciantes, pois tendem a ser facilmente enganados, entrando em relacionamentos abusivos(vide Red Flags e Dominação Abusiva)

O jogo da D/s ou escravidão consensual é baseado principalmente em troca de poder, onde uma das pessoas cede poder voluntária e consensualmente a uma outra que se torna detentora desse poder concedido. Há níveis de intensidade nessa troca, abrangendo além do fator sexual/sensual, fatores externos da vida cotidiana que podem fazer parte do "jogo de troca de poderes".

Há 3 tipos de relacionamentos D/s:

EPE - (Erotic Power Exchange) Troca de Poder Erótica

A D/s está apenas dentro do fator sexual e/ou sensual. Geralmente a troca de poder acontece nas sessões/cenas e/ou sexo. Geralmente não há fatores externos a serem levados em conta e a vida cotidiana/familiar/profissional não fazem parte do acordo. Os papéis assumidos pelos envolvidos podem ser mantidos fora do contexto sexual se houver encoleiramento(sinalizando um relacionamento fixo diante da comunidade BDSM). 

PPE - (Partial Power Exchange) Troca Parcial de Poder

A D/s se estende para fora da cena/sexo/sessão e pode se estender a fatores externos, como trabalho/família/amigos/cotidiano, de acordo com o que for acordado entre as partes. Nesse tipo de relação, são desenhados muito claramente os limites da troca de poder, onde haverá áreas que a parte dominante poderá "administrar" e outras que estarão fora do alcance. Geralmente os fatores familiar/profissional costumam ser colocados em área limítrofe. Dentro dessa dinâmica a parte dominante terá posse/propriedade sobre partes da vida da pessoa submissa.

TPE- (Total Power Exchange) Troca Total de Poder

A D/s se estende para fora da cena/sessão/sexo e se estende a todos os fatores externos da vida da pessoa submissa. Nesse tipo de relação, é colocado nas mãos da pessoa dominante o poder de decidir em quais áreas da vida da pessoa submissa vai atuar. Nesse tipo de relação a troca de poder é bem mais extrema, e os papéis dos envolvidos na relação são mantidos fora contexto BDSM.



Escravidão no BDSM não é escravidão real

Imagine-se acorrentado, posto a trabalhar a ferros e forçadamente, ter pouca comida e de péssima qualidade, não ter cama ou conforto, vivendo amontoado com outros, sem higiene adequada, sem privacidade, recebendo castigos físicos pesados e injustos, tendo que trabalhar por mais tempo que o corpo suporta. 

-Imaginou?
-É o tipo de situação que você gostaria de viver permanentemente?

Isso é só um pouquinho do que acontecia com um escravo, em tempo idos, onde as pessoas eram escravos reais.

No BDSM, relacionamentos de escravidão consensual, não são escravidão real. As pessoas que tem esse fetiche gostam de pensar que não tem direitos ou escolha, gostam de sentir que não possuem propriedade sobre si mesmas e que são meramente objetos nas mãos do proprietário, mas ainda assim, mesmo que vivam sob rígidos preceitos, estão naquela posição PORQUE GOSTAM e assim escolheram. Mesmo que gostem de pensar que não possuem direitos, elas os tem, e inclusive(pelo mecanismo que for) podem solicitar conversa franca sobre seus sentimentos, podem renegociar os termos de sua relação e falar sobre suas frustrações e anseios. Ninguém perde o direito de ser feliz e pleno numa relação, mesmo que envolva termos como: posse, escravidão, entrega ou renúncia.

Numa relação de escravidão BDSM o foco será manter o parceiro feliz, mesmo que essa felicidade seja estar sob grilhões e correntes, aos pés do outro. Sem esse foco, sem prazer mútuo a relação definha como qualquer outra e acaba.

Meu parceiro não é Deus de verdade e eu não sou verme

É bastante comum dentro do meio fetichista BDSM o pensamento de que um TOP é um ser divino superior dotado de poderes sobrenaturais e bottom é o bicho da goiaba caída na beira da estrada. Muitas pessoas gostam de pensar ou de se sentir dessa maneira: "Sou tão pequeno e inferior que preciso de você pra me guiar/proteger/ensinar/(preencha aqui a palavra que vem ao caso)." ou "Sou o supremo dominante protetor/cuidador/professor/(preencha aqui a palavra que vem ao caso), venha para o meu domínio." Existem pessoas que por N motivos gostam de se sentir assim, mas isso é parte de um papel que jamais pode ser confundido com superioridade/inferioridade real. A hierarquia está dentro do relacionamento por escolha dos envolvidos e isso não pode ser exigido de pessoas fora dele, excetuando-se casos de locais onde essa hierarquia é comum a todos(festas/plays e casas litúrgicas BDSM).

Então, na prática a pessoa pode gostar de se sentir "verme", gostar de ser humilhada, de se sentir menor ou inferior, mas no fim das contas, ela não o é. A pessoa pode gostar de se sentir o supremo e poderoso dominante, o Deus onipresente, e na verdade, ela é só um ser humano, como eu e você.


Glossário:

Top - Aquele que está no comando e/ou realiza a ação ou prática no bottom.

Bottom - Aquele que é alvo dos comandos e/ou recebe a ação ou prática realizada pelo top.


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