segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

A pasteurização do BDSM.

Texto de Bia Baccellet

Hoje eu quero falar sobre nostalgia e tempos modernos. Sobre Old School e New Generations. E sim, vai ter textão mimimi.

Não me considero uma pessoa nostálgica, que vive tendo saudades de um passado distante que era muito melhor que hoje. Não, não acho que o passado era melhor, eram apenas outros tempos, outras gerações no controle, outra forma de ver e sentir. Mas saudade a gente não sente de coisa ruim né? Senão não seria saudade.

Inevitavelmente as coisas mudam, os tempos mudam, as pessoas mudam. Momentos passam, tempos passam, pessoas passam.

E aí está a questão: O BDSM mudou, ou foram as pessoas que mudaram?

Não podemos ignorar que algo mudou, e parece que, permanentemente. Alguns valores estão virando "coisa do passado", mesmo que ainda sejam vitais e necessários.

Os Dinos e a New Generation

A galera do "Novo BDSM" tem um discurso progressista, vanguardista, o tal do "meu BDSM", aquele sem regras, sem certo ou errado, sem definição de papéis, sem rótulos. Pessoas que querem mais é ver o circo pegar fogo, e que cada um coloque o fogo do jeito que mais convier. Esse BDSM anarquista e desregrado não funciona como grupo ou comunidade, já que não há como organizar quem só quer a anarquia. Quem faz aquilo que quer e dá na telha não está pronto pra assumir ser parte de algo maior, organizado, comunitário e plural. Quem quer fazer parte da comunidade BDSM terá que aceitar que comunidades só existem quando há algum tipo de parâmetro que as organize, ou regras.

Os praticantes mais antigos, que estão há muitos anos no BDSM e fizeram parte das comunidades pioneiras do BDSM no Brasil são chamados carinhosamente de "Dinos". Geralmente, quando fazemos parte de algo tão único e tão escondido(na época), temos tendência a tentar a todo custo manter esse mesmo clima de pioneirismo e de sociedade secreta que as coisas tomaram na época. Os grupos eram pequenos e muito fechados, o conhecimento era passado dos mais antigos para os mais novos de forma muito séria, e os aprendizes recebiam uma conscientização muito forte da responsabilidade que pousaria sobre seus ombros: ensinar a outros o que haviam aprendido.

O contraste entre a New Generation e os Dinos é algo como um abismo colossal. Entre a total falta de regras e a hierarquia organizada ainda não há um consenso, e isso está fazendo com que bons praticantes(deixando claro que haviam praticantes ruins no passado e há bons praticantes hoje) e pioneiros se afastem da comunidade por não concordarem com a falta de seriedade dos novos praticantes, que não tem respeito pelo que foi construído no passado.

Estamos atualmente num cabo de guerra entre a liturgia e a anarquia, o old e o new, o passado e o presente, sem vislumbre de um entendimento a curto prazo.

A Nostalgia New Generation

Existe uma fatia de praticantes da New Generation que sente saudade. Geralmente são pessoas que descobriram o BDSM há poucos anos, não viveram a Old School e nem estiveram no meio dos pioneiros, mas eles sentem saudade. Sentem saudade do BDSM de antigamente e vivem nostálgicos, sentindo-se frustrados com as mudanças que o BDSM sofreu com o passar do tempo. Mas esses praticantes não tem idade e nem tempo de prática para serem tão nostálgicos, e nem tampouco pertencem a nenhum clã ou casa BDSM tradicional que os tenha ensinado conforme a Old School prega.

Quando são questionados sobre como aprenderam as práticas e conheceram o BDSM, são sempre vagos e confusos em explicar seu início de caminhada há 2 ou 3 anos atrás, sempre de forma muito litúrgica e pouco precisa.

Essa nostalgia pós-moderna é usada pra uma espécie de autopromoção, onde o praticante usa uma "saudade" de tempos de outrora como forma de legitimá-lo, de torná-lo verdadeiro. Algo como: "Bons tempos onde o BDSM era mais verdadeiro" ou "Na minha época as coisas não eram assim", sendo que a "época" dele foi ontem mesmo.

BDSM Pasteurizado em Caixinha Tetrapack

Essa New Generation também trouxe um conceito completamente novo: O BDSM Pasteurizado. Ele pode ser servido na mesa da sua família, em lindas caixinhas tetrapack, muito bonito, asseado, limpinho, cheiroso, romântico e poético. E dele você pode falar para seus familiares sem medo de ser taxado como pervertido ou indecente, afinal, é tão fofinho que ninguém vai se assustar.

A pasteurização do BDSM se deve em parte aos livros de romances melosos que acharam no fetiche um nicho a explorar, fazendo com que o diferente fizesse parte do imaginário das pessoas, mas claro de uma forma bonitinha e simpática, já que ninguém quer ler livros sobre sofrimento, dor, lascívia e devassidão(isso não pode na mesa de jantar!).

E quanto mais pasteurizado o BDSM é, mais inofensivo e normal ele fica, ficando até mesmo sem o sabor original, algo como que tivesse sido "desnatado e descafeinado". Sem gosto, sem cheiro, sem cor, sem graça. Só o velho romance água com açúcar que, pra os praticantes da Old School, nunca teve graça.

Por longos anos, o motivo principal dos praticantes de SM e posteriormente BDSM, era exatamente ser diferente de todo o resto. Sujo, imoral, indecente, violento, suado, fedido e molhado(Vulpes essa me lembra você), e essa era a força motriz que mantinha o movimento vivo e ao mesmo tempo  era combustível para os mais velhos terem vontade de passar adiante seu conhecimento e ensinamentos. E infelizmente isso está morrendo. Ninguém quer aprender(não de verdade), com raras exceções de pessoas que realmente entendem os motivos pelos quais praticamos BDSM, raras mesmo são as pessoas que enxergam pelo prisma certo, que tem o norte apontado para a motivação correta, e rejeitam esse BDSM pasteurizado e embalado à vácuo, mas não sabem onde buscar e a quem recorrer, já que a Old School está cada vez mais distante no passado, e os Dinos estão se fechando entre os seus, tentando preservar o que pra eles sempre foi motivo de paixão e orgulho.

Acho que a Old School ainda tem muita coisa a nos oferecer, muito a nos ensinar. Muita coisa deve ser resgatada de nosso passado(não tão distante assim) e deve ser trazida à luz, para que a New Generation tenha um "choque de realidade", e aprendam que esse BDSM bonitinho e fofinho está muito distante do ideal, e que as coisas são feias, e podem ficar muito mais feias se não se conscientizarem.

E talvez, por esse caminho, o abismo entre as gerações seja vencido, com uma ponte entre elas, onde o que vai fluir é o respeito e o conhecimento.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário